11 de janeiro de 2012

RPG e História: Os antecedentes das Cruzadas


Olá a todos.

De férias da Universidade trago para vocês esta postagem sobre um tema que tenho muito apreço, como historiador e como jogador-narrador de RPG: As Cruzadas, utilizei várias vezes, em aventuras, as cruzadas, ora como pano de fundo, ora como ponto principal, alguns dos meus antigos jogadores devem lembrar bem disso.

O texto que vem a seguir é um trabalho de pesquisa, apresentado por mim como última avaliação da disciplina de História Medieval no Curso de História da Universidade Federal do Pará, seu enfoque é tentar entender o que estava por trás das Cruzadas, seus antecedentes e motivações. Claro que é praticamente impossível descrever em poucas linhas os motivos que culminaram em um grande movimento militar que durou trezentos anos e que aconteceu a quase um milênio atrás, mas, creio eu, este texto pode ser um excelente ponto de partida para que narradores e jogadores tenham interesse em fazer uma pesquisa histórica, mesmo que com um enfoque não-acadêmico, sobre os antecedentes que movem os grande acontecimentos de suas aventuras, ou até mesmo criá-los.

Dito isto, vamos ao texto:


Cruzadas: Guerra Santa ou Luta Armada?

As Cruzadas, termo que vem do italiano “Crusciata”, foram a maior demonstração do poder e influência da igreja na sociedade medieval, e é considerada,por historiadores como Cécile Morrison, sua maior vitória e ao mesmo tempo, sua maior derrota.

Seu ponto de partida oficial é o Concilio de Clermont no dia 27 de novembro de 1095, onde o Papa Urbano II faz a sua pregação exortando os presentes à defesa dos territórios cristãos no Oriente e a tomada de Jerusalém das mãos dos muçulmanos, pois segundo sua pregação:

"É urgente levar com diligência aos nossos irmãos do Oriente a ajuda prometida e tão necessária no presente momento. Os turcos e os árabes atacaram e avançaram pelo território da România até a parte do Mediterrâneo [...] eles os venceram sete vezes em batalhas, matando e fazendo grande número de cativos, destruindo as igrejas e devastando o reino. Se vós deixardes isto sem resistência, estenderão os seus exércitos ainda mais sobre os fiéis servidores de Deus."

O entusiasmo com o qual a população, tanto nobre quanto camponesa, “tomou a cruz” surpreendeu até mesmo Urbano II. Respondendo a última frase de sua pregação “Esta é a vontade de Deus” aos gritos de “Deus quer”, espalhou-se pela Gália uma grande onde de união à Cruzada, e segundo o livro “Historie Anonyme de La Premiere Croisade” muitos viram o chamado à Cruzada nas palavras de Cristo no evangelho, em passagens como “Se alguém quiser me seguir, renuncie a si próprio, tome a sua cruz e siga-me”, e isso aliado aos discursos feitos por arcebispos, bispos e abades nas regiões e províncias da Gália, sob o comando do Papa, convocavam os Francos a sem demora buscarem seguir os passos de cristo, costurando cruzes em suas roupas e chamando a si mesmos de “soldados de Cristo” e “marcados pelo sinal da cruz” (crucesignati em italiano).

Entretanto, apesar da convocação de Urbano II trazer a defesa dos territórios cristãos no Oriente como pilar Central da Cruzada, muitos historiadores, como Cécile Morrison, afirmam que isto foi apenas um “pretexto”, muitos outros motivos estavam por trás do envio de um exército para a Terra Santa. Condições econômicas e sociais, como o alto crescimento demográfico, a falta de terras cultiváveis, crescimento da economia monetária e das trocas comerciais, explicam em parte o movimento que leva ao Oriente europeus ocidentais em busca de melhores condições.

Mas é certo afirmar que, entre todas estas condições motivadoras para a Cruzada, aquela que podemos tomar como principal, do ponto de vista eclesiástico, era aumentar a influência e o poder da Igreja na Europa, diminuídos diante da ascensão dos senhores feudais nos séculos X e XI. Urbano viu nos pedidos de auxilio feitos pelo Imperador Bizantino Alexius Comnenus I, a chance que tanto queria para colocar os nobres e cavaleiros europeus sob a égide da igreja. E segundo Hilário Franco Jr, podemos observar que os primeiros passos dados para este fim estão presentes na pregação de Urbano II, que aumenta o alcance da, já instituída pela igreja em meados de 1030, Trégua de Deus, que tinha como objetivo limitar e controlar as guerras entre os senhores feudais, visando assim diminuir as perdas de vidas e de recursos.

Segundo Raul Glaber e Orderic Vital, os ditames da Trégua traziam o seguinte texto:

“Uma Trégua de Deus deve ser mantida do advento do senhor até as oitavas da Epifania e da Septuagésima até as oitavas da Páscoa, e do primeiro dia de Rogações até as oitavas de Pentecostes, e em todos os momentos do pôr do sol de quarta-feira à aurora de segunda-feira.”

Na “nova” Trégua de Deus instituída por Urbano II em Clermont, ele pede:

“Que aqueles que se acostumaram a travar guerras particulares contra os fiéis marchem agora contra os infiéis nesta guerra que deve começar agora e terminar apenas com a vitória. Que aqueles que enfrentam irmãos e parentes tornem-se Soldados de Cristo e lutem agora contra os bárbaros [...] Que nada atrase aqueles que estão de partida, que eles resolvam seus problemas [...] e que zelosamente iniciem sua jornada sob a liderança do Senhor”

E apelando também para o sacrifício e a renúncia daqueles se arriscariam em tal jornada, o Papa acabou por criar, não sabemos se intencionalmente, uma nova comunidade de peregrinos armados, apoiados no conceito de “Guerra Justa” contra os infiéis formulados desde o século IV por Santo Agostinho, que admitia a necessidade da guerra contra os “hereges” que as armas espirituais não pudessem converter, e que vai ser expandido pelo pregador Ramon Llull no século XIV, que dizia, segundo Ricardo da Costa, que os cristãos deviam ter mais fé para reconquistar a Terra Santa e converter os muçulmanos de duas formas: com a força das armas dos homens leigos e com a força da razão, sendo esta a melhor forma, como ele descreve em seu “Livro contra o Anticristo”:

“Pela experiência das guerras e batalhas que os reis, príncipes, grandes barões, cavaleiros e outros homens cristãos tem feito contra os sarracenos pode –se conhecer e saber que por outra melhor e mais elevada maneira é possível converter o mundo e conquistar a Terra Santa e Ultramar, que não é aquela que os cristãos tem feito contra os infiéis, as guerras e batalhas sensuais, e sim as batalhas intelectuais, de uma maneira semelhante á que os sarracenos iniciaram e multiplicaram sua seita” (Libre contra Anticrist, In: NEORL, VolIII: 159).

Vemos em Ramon Llull, a evolução do pensamento da “Guerra Justa”, que foi modificado pelo Papa com promessas de recompensas celestes aos cruzados, passando assim de guerra justa para “Guerra Santa”, esta nova comunidade organizada, diferia completamente da multidão que, no inicio do ano 1000, saiu de diversos cantos da Europa em direção à Jerusalém para visitar o Santo Sepulcro, como forma de penitência e remissão dos pecados.

Segundo Hilário Franco Jr, esta mentalidade medieval belicista, aliada ao dualismo presente no comportamento do homem medieval onde todos se relacionavam com o conflito do bem e do mal, foi sabiamente utilizada pela igreja que, exercendo seu papel de mediadora entre a humanidade e Deus, detinha o poder de indicar quem devia ser combatido, em um processo de demonização dos inimigos da igreja que Urbano vai estender aos turcos e sarracenos.

Ainda segundo Franco Jr, o crescimento do poder e influência da igreja medieval que possibilitou a criação e a manutenção da Cruzada, tiveram suas raízes estabelecidas no final do século IX e inicio do século X, em uma reação da igreja que era controlada pelos nobres, os laicos. Para ter de volta a sua autonomia e depois controlar toda a sociedade européia medieval, o primeiro passo dado que foi dado pela igreja no cumprimento deste duplo objetivo foi a fundação do Mosteiro de Cluny, o documento de doação do feudo para a criação do mosteiro feito pelo Duque Guilherme da Borgonha, trazia em suas linhas a clara intenção de conservar Cluny livre da influência laica: “os monges não estarão sujeitos ao pode real ou qualquer poder terrestre”.

Cluny adotava a regra beneditina, seus monges valorizavam os trabalhos litúrgicos e dessa forma recuperaram o prestígio da vida religiosa, e em muitos lugares surgiram mosteiros baseados no modelo de Cluny, tornando-se assim uma poderosa ordem no final do século XI. E no projeto da igreja de submeter o poder laico ao poder clerical, Cluny teve um importante papel, e importante foi também na elaboração e propagação dos conceitos da Trégua de Deus e da Guerra Santa. Vale dizer que estes conceitos foram utilizados para o controle da atividade guerreira dos nobres laicos, ora reprimindo, ora exportando como nas Cruzadas, e, portanto é significativo dizer que as cruzadas foram concebidas pelo Papa GregórioVIII e pregadas por Urbano II, ambos monges de Cluny.

Estas mudanças, de acordo com Franco Jr, eram o elemento de pacificação da Europa cristã, e que colocaria a cristandade sob a proteção da igreja, objetivando o controle da sociedade laica e visando aumentar a área de alcance da sociedade clerical pela submissão dos infiéis (Sarracenos, Bizantinos e Cátaros).
Por fim, fica claro que as Cruzadas representaram o apogeu do poder da igreja sobre a comunidade cristã, em especial no Papado de Inocêncio III (1198-1216), sendo neste ponto que começa a sua derrocada, que vai culminar no Cisma do Ocidente.

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