Tem um tempo que não escrevo em nenhum blog. Estava ocupado demais com o processo de qualificação do meu doutorado: Paidéia mitopoética – a formação do homem em Tolkien. O exame foi em setembro, mês passado, a qualificação foi um lento processo torturante de exibição de falhas, contradições e melhorias do meu projeto e dos capítulos que já escrevi. Passei, fui aprovado sem objeções ao eixo estrutural da tese. Tenho até agosto de 2012 para entregar os volumes finais.
Quinze dias depois, já me sinto à vontade de comentar novamente minha vida de blogueiro. Claro que me sinto com um passo importante ao fechamento do doutorado e uma estabilização profissional importante na minha carreira e, portanto, mais segurança para minha mulher, filha e futuros projetos.
Claro que só pelo título dá pra inferir a importância da minha experiência com Role Playing para o tema escolhido para o doutorado. Já tendo desenvolvido minha dissertação de mestrado sobre Tolkien, decidi continuar minha pesquisa. A marca que o Role Playing deixa naqueles que aprofundam verdadeiramente em seus temas não é facilmente apagada.
Nesses devaneios, fiquei pensando no que é o sucesso no Role Playing. Atualmente, a maior parte das pesquisas sobre RPG e educação se preocupa em detectar metodologias e ferramentas de transmissão de conteúdos conceituais (história, física, biologia, geografia, matemática, língua portuguesa) a partir do Role Playing para aplicar em sala de aula no ensino fundamental. Essa linha é fundamental e um grande espaço de reflexão sobre Role Playing foi conquistado na academia por causa disso. Todo mérito e incentivo aos bravos pesquisadores que são comprometidos com sua própria batalha.
Todavia, essa pesquisa não me interessa fazer. Talvez porque sendo professor de escola pública de história no ensino médio e fundamental, embora esteja afastado, e casado com uma professora de ciências para o ensino fundamental, seja um pouco cético e desiludido nas possibilidades concretas do uso do Role playing, e qualquer outra ferramenta para apenas transmissão de conteúdo, na escola pública.
Eu penso que o problema é a educação não apenas técnica ou instrumental. O problema é a questão moral, dos valores e virtudes. Sei que corro risco de ser imediatamente identificado como o fundamentalista, autoritário, nazista e inquisitorial (o raciocínio raso e preconceituoso sempre funciona com associações imediatas e irracionais), mas insisto que essa preocupação e reflexão sobre aquilo que dá sentido à vida e aquilo que fundamenta um projeto de convivência humana e felicidade é a principal questão da educação de hoje.
E não apenas para crianças e adolescentes. Mas também para jovens e adultos. Como professor universitário, vejo o quanto isso falta nos cursos superiores. Apenas algumas aulas básicas de comportamento e cultura organizacional, adestrando os ingressantes no mercado de trabalho ou aqueles que buscam reciclagem a pensar que crenças e valores são apenas opiniões culturais variáveis, sem nenhum tipo de fundamento mais universal e consistente, sendo apenas verniz para cobrir a ferrugem do sistema capitalista, cujo fundamento é inequivocamente o lucro, e consequentemente a única regra moral absoluta é a competição e a imposição e humilhação do adversário no mercado.
Essa conversa me dá sono. Primeiro porque é evidente a dificuldade da vida. As manifestações dos sem-ipad em Londres e em Madrid mostram o quanto a juventude contemporânea não tem projeto político revolucionário nem grande ideais. Eles querem dinheiro para consumir. Isso seria ótimo se em vez de exigirem, como meninos mimados, do paizão Estado seus direitos de consumo, arregaçassem as mangas e fossem construir o país em que estão.
Segundo porque nenhum grande empresário ou alguém que se realiza profissionalmente pode ser um imbecil que não parou em nenhum momento para direcionar sua vida, pensar em seus valores e fomentar uma investigação intelectual, ainda que não acadêmica, sobre o significado de sua vida. O problema é que hoje são poucos os que mantêm essa consciência, e a grande maioria acaba virando escravo dos projetos de felicidade das propagandas de cerveja, das novelas de televisão, das griffes alternativas de rock, dos projetos de religião pasteurizadas, da mercantilização que se transformou a felicidade hoje.
Penso que o Role Playing é uma alternativa que subverte esse sistema alienador e anestesiador. Porque ele produz, ele cria, ele faz com que o esforço da imaginação se instaure tanto na elaboração de uma aventura quanto na construção de um personagem, na aprendizagem de um sistema e no mergulho fantástico de uma ambientação. Diferente do padrão da sociedade de consumo, o Role Playing dialoga com uma tradição ancestral, primeva da humanidade, dos mitos sagrados, dos textos religiosos, da busca mística, da investigação filosófica metafísica, da arte poética trágica, épica e cavaleiresca, do drama existencial e do anseio da verdade.
Parei de jogar RPG em 2005, por uma série de razões, e só voltei a jogar porque em 2009, quando me preparava para casar, fui a uma festa, meio live action meio catarse maluca, que amigos de décadas preparavam, aos moldes dos antigos rituais do Lobisomem: o Apocalipse. Essas festas, os caern, eram freqüentes nos finais dos anos 1990 e início dos anos 2000. Nelas, além de doses generosas de bebida alcoólica e banquetes medievais, eram celebrados valores como amizade, confiança, esperança e alegria, assim como virtudes como coragem, força e sabedoria.
De fato, todos os Role Playing possuem essa matriz da moralidade, ainda que debatida, relativizada, virada do avesso, a questão moral é parte integrante do Role Playing. Tomar decisões diante de momentos críticos exige uma formulação moral, mesmo que se não prévia, posterior a essas decisões.
Quando voltei do caern em 2009, montei um jogo com minha mulher e alguns amigos. Fizemos um blog (www.rpg-mago.blogspot). Está entre os melhores jogos que já narrei na minha vida.
Outro fator que me fez pensar no que é sucesso foi o blog www.jovemnerd.com.br. Descobri esse blog esse ano graças a uma lista de jogos de computador de um clube ao qual participei nos mesmos fins dos anos 1990 e início dos anos 2000. Esse pessoal fez uma lista de discussão e conversa, e conheci o grupo do jovem nerd.
O que mais me impressionou no blog foi a capacidade dos autores de construírem sua vida sob a identidade do nerd. Claro que colocaram no mercado e ganharam muito dinheiro com isso. Mas o que mais me impressiona é a capacidade que eles tiveram de ganhar dinheiro afirmando uma identidade, e não apenas sendo tragado por ela. São essas as iniciativas mercadológicas que funcionam. Por isso que a sociedade de mercado vai pra frente. Não são apenas revendedores de franquia conceitual sem nenhuma relação com o produto que vendem. Eles produzem conteúdo, são como artesãos medievais que estabelecem vínculos com seus clientes e constroem sua vida em cima daquilo que decidiram fazem em nome de sua felicidade.
O trabalho não é apenas um lento e penoso tempo de espera para finalmente chegar o salário ou acabar o dia e então ter o mísero tempo de consumo, reduzido e frustrante. É o próprio trabalho que é a realização, o consumo é a cereja do bolo da felicidade. E o mais fascinante é que o grupo que mantém o blog é como um grupo de Role Playing. Todos os produtos do grupo transpiram os valores de amizade, cumplicidade e confiança. Uma verdadeira família, com direito a ofensas ocasionais e reconciliações recíprocas. Ver um nerdcast ou nerdoffice ou qualquer produção é relembrar o grupo de role playing da adolescência, onde esses mesmos valores pareciam concretos e indeléveis. Construir uma vida e uma fonte de renda fundamentado nesses valores é um sonho para muitos rpgistas.
Hoje acompanho daqui de São Paulo todas as conquistas dos desbravadores deste blog, o rpgpara. Confesso que sinto um orgulho vaidoso, perigoso quando tratamos de sucesso, quando vejo os rumos do Ragabash, do John Bogéa, do Gilson, do Mike, do Daniel Coimbra, do Lennon, do André Mousinho, da Cíntia e de todos que compõe essa távola honrada e autêntica, que me faz respirar um ar saudável de nostalgia da minha adolescência e da eternidade dos valores de amizade e construção coletiva de um projeto.
Enfim, fiquei pensando nessas coisas esses dias. E confesso que cada vez mais entendo a importância do Role Playing na minha vida. Graças à generosidade da minha mulher, e uma graça especial do Eterno Deus, hoje consigo jogar com minha família. Olho agora, enquanto digito esse texto, para minha filha, de apenas cinco meses, que dorme próximo do computador. Imagino se terei essa maravilhosa oportunidade de jogar com ela, e apresentá-la a um mundo que aos racionalistas ressentidos e medrosos pode parecer inútil.
De fato, a fantasia é perigosa, como bem sabiam os místicos, religiosos e poetas, porque as musas podem dizer a verdade ou a mentira, e as sereias podem aprisionar no tempo. Porém, como sempre foi desde que o homem começou a perceber sua finitude, sua condição mortal e contingente, sua mais absoluta fragilidade, a fantasia também revela uma autoconsciência, e nos permite investigar as realidades mais objetivas que nossos sentidos não podem revelar: esses significados universais e perenes, que todos sabemos que nos são imprescindíveis de viver, e poucos homens são aqueles que ousam pautar nesses significados a vida concreta e os relacionamentos que importam.
10 comentários:
Grande Diego,
Muito bacana seu texto.
Me sinto muito feliz de pertencer à sua mesa de RPG.
Atenciosamente,
Hugo Marcelo
Cara... fiquei emocionado.
É sempre muito bom ser reconhecido, principalmente por pessoas que a gente admira.
Que venham os poliedros!
Ainda vamos jogar muito com nossa princesinha!!! Aliás, ela já participa da mesa, né... não demora muito e ela vai reivindicar um personagem, uma ficha, dados...rs...
Te amo!
Bjs
Dieguito, seu post me fez lembrar uma cena:
Certo dia, algum tempo atrás, Alessandra (minha esposa) me liga:
- Daniel, você não imagina o que estou vendo aqui na sala de casa!
- Diga, amor.
- A Ana (minha filha de 6 anos), o Adriel e a Camily (primos) estão sentados na mesa, nos mesmos lugares que você e o pessoal do jogo, quietinhos, prestando atenção na Ana, que diz:
- Então, o que vocês fazem?
Critical Hit!!!!
: D
Grande Diego, sempre mandando muito bem nas postagens, muito bom.
Daniel Coimbra, se aqui tivesse jeito eu clicava em "Curtir" !
Abraços
Fabiana Klautau
Ótimo texto. Também faço do RPG meus estudos acadêmicos. A monografia da graduação foi sobre RPG, e a da especialização, um estudo de caso sobre o site jovem nerd e a definição do que seria o perfil nerd no Brasil (que em geral difere do 'nerd-seboso' do resto do mundo). E agora estudo para passar na seleção do mestrado, tratando de histórias em quadrinhos na formação de professores.
Foi muito bom ler seu texto, e salvei-o aqui para mostrar a colegas meus. Não se preocupe, tudo será feito com a devida referência ao site e a vc.
Abraços, Jéssica.
Estou, profundamente, embasbacado com a beleza de seu texto. À partir de já, estarei assinando seu blog. Obrigado pelo texto.
Fiquei muito contente com a referência desse texto feita pelo www.jovemnerd.com.br, em relação ao nerdcast sobre Steve Jobs e a busca da realização e felicidade.
Um grande abraço a toda a equipe do jovemnerd!!
Simplesmente demais o texto.
Saber da importãncia do RPG nas vidas das pessoas é incrível.
Parabéns!
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