30 de janeiro de 2010

Criando Deuses - Parte III

Autor: José Kleibe Souza Silva (acadêmico de pedagogia - UFPA), Altamira - PA.
Contato: jkleiber_sander@hotmail.com



SÓ PODE HAVER UM!

Este é um tema deveras incomum em mundos de fantasia: o monoteísmo. Digo isso porque, tratando-se de divindades, o comum para diversos cenários, principalmente os medievais, são Panteões compostos por vários deuses, com cada um governando sobre diferentes aspectos da vida nesses mundos.

Mas como seria um mundo de fantasia monoteísta, ou de religiões dominantes monoteístas? O que aconteceria se o único deus de um mundo fosse maligno?


RELIGIÕES CONFLITANTES, DEUS ÚNICO

Nesta hipótese, a idéia pela qual começamos é a de que, apesar da existência de um único deus, existe mais de um jeito de interpretar sua presença e cultuá-lo. A primeira conseqüência disso pode ser o surgimento de diversas religiões diferentes, com tradições próprias e singulares, que, entretanto, rezam para a mesma divindade, sendo igualmente atendidas e beneficiadas por ela.

Se a divindade em questão fosse presente e interagisse com seus fiéis constantemente, através de visões ou avatares[1], haveria poucas divergências filosóficas entre as religiões, pois, apesar de cultuarem o mesmo deus de forma diferente, possuiriam a parte central de sua crença semelhante. Assim, a influência que o deus exerce sobre seus seguidores serviria como forma de manter a harmonia entre diferentes cultos, mesmo em partes distantes do mundo.

[1] Avatar é a encarnação de uma divindade, uma criatura feia de uma pequena porção de essência divina, mais ou menos uma centésima parte. É como se fosse uma “versão miniatura”, mais fraca, do próprio deus.

A realidade seria outra, no entanto, se o deus desse mundo fosse, ao contrário do exemplo acima, uma divindade distante, não se manifestando abertamente para seus fiéis. Nesses casos, ao invés de influenciar seus seguidores através de visões constantes e avatares, ele os deixaria livres para viverem suas vidas e encontrarem sozinhos à “verdade”. Aqui, mesmo que as religiões possuam o ponto central em comum, haveria divergências muito maiores em sua forma de pensar e enxergar o deus. Outro fator agravante do choque religioso que poderia ser gerado seria o encontro de sacerdotes de religiões diferentes, um conflito essencialmente cultural. Mesmo que as diferentes religiões busquem o mesmo fim por caminhos diferentes, a natureza desses caminhos pode tornar-se motivo de conflito e intolerância, gerando desde simples debates até guerras santas.

Outro ponto interessante que pode ser abordado é o da existência de “falsas religiões”. Em ambos os cenários podem existir religiões que pregam e defendem a existência de outros deuses, mesmo que estes não existam. As falsas religiões podem surgir através da perda de fé no deus verdadeiro, como um meio de enganar os tolos, revoltar-se contra o deus ou até mesmo contra uma ordem social opressora. Um ótimo exemplo disso é a religião dos Seguidores, liderada pelo Alto Teocrata, nas “Crônicas de Dragonlance”. Inicialmente essa ordem surge para ajudar os sobreviventes do Cataclismo e acaba por se corromper, tornando-se uma organização fanática que alega a existência de falsos deuses ao invés de buscar os deuses verdadeiros.


MAL PRESENTE

Sob o mesmo prisma descrito acima, poderíamos lidar com mundos onde o deus único fosse maligno. Entretanto, precisaríamos fazer alguns ajustes para adaptar as idéias a cenários onde, provavelmente, os valores e a moral seriam opostos aos nossos ou, pelo menos, inexistentes no formato como os conhecemos.

Caso o deus maligno fosse uma entidade presente no mundo e tivesse a prática de interferir na vida de seus fiéis, as sociedades desse cenário seriam, em sua maioria, tirânicas e predatórias. Seriam necessários governos fortes o bastante para restringir as vontades individuais dos cidadãos e obrigá-los a seguir um padrão específico que seguisse as orientações do deus, e esses governos tenderiam a competir entre si por poder e pela atenção irrestrita da divindade. Provavelmente, os sacerdotes da religião oficial seriam de grande importância social, governando diretamente ou influenciando ativamente nos governos do mundo.

Se a entidade maligna criadora desse mundo é ausente e distante de seus possíveis fiéis, uma das hipóteses é a de que, apesar do mundo ser “governado por princípios malignos” não haveria uma força direta que influenciasse todo o cenário a segui-los. Poderia até mesmo ocorrer do mundo se desenvolver além da maldade do ser que o criou e seguir caminhos e crenças diferentes, ou até mesmo opostos, à natureza da criação. As sociedades se desenvolveriam com maior liberdade e diversidade e, apesar da presença de sacerdotes do deus maligno, ou até mesmo de civilizações cientes de sua existência, o mal não seria “regra” no mundo.

Por exemplo, imagine um cenário com dramas muito semelhantes aos da Idade Média européia, com pragas e guerras assolando a população, adicione a ele uma sociedade sutilmente maligna e teça cuidadosamente o clima do jogo, puxando-o para um lado mais dramático, sombrio, fatalista e anti-heróico. Um dos maiores choques que os personagens jogadores poderiam ter seria a descoberta da verdadeira natureza de seu mundo e de sua existência. Se eles fossem maus, veriam que seus atos seguem de acordo com a vontade que criou o universo e se sentiriam justificados em suas ações (não que personagens malignos precisem de justificativas, mas ainda assim seria uma revelação e tanto); enquanto que, se eles fossem bons, o clima do jogo poderia ficar ainda mais pesado e se tornaria algo desesperador para personagens assim saber que não existe qualquer, esperança de mudança. Eles estariam lutando uma batalha quase perdida pelo que acreditam e para mudar o mundo, o que pode render aventuras bem interessantes, principalmente se o cenário de jogo admitir a existência de outros planos de existência.


A ASCENSÃO DO MAL – RESISTÊNCIA HERÓICA

Um mito presente em alguns sistemas monoteístas é o da existência de um adversário ao deus criador. A natureza desse adversário varia, podendo ser desde uma parte do deus criador, como sua sombra, até uma de suas criações, por exemplo, um anjo rebelde. Imaginem agora que esse Adversário tivesse derrotado o deus criador, e o aprisionado, ou bloqueado sua influência na criação. Como seria a vida em um mundo onde as pessoas estão acostumadas a um deus bondoso e são, subitamente, postas sob o domínio irrestrito de um novo deus maligno? E quão completa seria a vitória do mal sobre o bem?

Algumas hipóteses me vêm à mente quando penso nisso. A primeira seria que o deus maligno, enfraquecido depois da batalha contra o deus criador, ficaria restrito a uma parte da criação, expandindo seu domínio a partir daí, enquanto busca retomar seu antigo poder. A segunda implica em uma vitória completa contra o deus criador, a partir da qual o deus maligno buscaria perverter e corromper a criação. E a terceira seria se, ao invés de vencer, o deus maligno tivesse perdido a batalha, mas que antes de sua derrota final ele conseguisse bloquear a interferência do deus criador sobre parte da criação, na qual ele se refugiaria. Esta parte então ficaria sob o jugo do mal e o deus maligno teria como principal objetivo manter o bloqueio contra o deus criador e recuperar o seu poder, para então guerrear novamente.

A forma de vitória obtida sobre o deus criador influência diretamente o tipo de domínio que será estabelecido no mundo em questão e quais podem ser as esperanças dos heróis neste cenário. Se o deus maligno ainda está fraco ele deverá começar sua conquista aos poucos, destruindo ou corrompendo os que se opõe a ele. Se ele estiver forte, a conquista da criação será rápida e inquestionável, afinal, trata-se de um deus.

Os métodos que podem ser utilizados para a conquista da criação são diversos e influenciam diretamente a vida nesses cenários. É importante pensar que, por tratar-se de um deus, uma oposição duradoura a ele é um feito realmente heróico e que este usará tudo que estiver a sua disposição para obter o que quer. Esses métodos incluem a corrupção de heróis ou raças, ampliação de sua religião e proibição de qualquer alusão ao antigo deus, guerra aberta contra os habitantes de um mundo e instituição de uma ditadura sob seu controle direto ou o de seus arautos.

A vida nesse cenário pode ser expressa pelo esforço desesperado dos heróis do mundo para derrotar o deus maligno, uma luta constante por sobrevivência ou, se decidirmos explorar o lado maligno, pela caça e extermínio dos últimos heróis. Ficando a cargo do mestre, decidir quais serão as esperanças reais para os personagens em seu cenário e se haverá a possibilidade de se jogar com os seguidores do deus maligno.

Continua...

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Nós do RPG Pará gostariamos de agradecer ao Kleibe por ter mais uma vez participado do quadro Colaborador Eventual do RPG Pará. Aqueles que também estiverem interessados em participar desse espaço e publicar suas idéias e outras coisas mais sobre RPG, deverão seguir as orientações no seguinte link: Colaborador Eventual do RPG Pará.

1 comentários:

Atrodeon disse...

Legal esta matéria. Me chamou a atenção pelo fato de que estou mestrando uma estória em que o deus maligno conseguiu banir seus dois únicos irmãos para o mundo dos homens. Eles se tornaram semi-deuses estágio inicial. O mundo mudou, apesar de algumas pessoas ainda acreditarem no retorno dos irmãos. Enfim, é mais ou menos isso aí que foi escrito...

Parabéns pela matéria.

atrodeon

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