Diretamente do front acadêmico, novas citações de historiadores badalados. Dessa vez sobre literatura arturiana, a matéria da Bretanha. Fonte inesgotável de enredos de aventuras rpgísticas, material de estudo literário, filosófico e histórico.
A fatídica data da qualificação da tese se aproxima. Para aliviar a tensão, divido com vocês citações despretensiosas e desconexas. Talvez sugestões teóricas para refletirmos sobre o significado da aventura em nossos jogos.
“Como em todas as civilizações, a literatura narrativa da Idade Média está, em suas formas mais antigas, inteiramente projetada no passado: passado carolíngio das canções de gesta e passado mais distante ainda das lendas heróicas germânicas, passado antigo ou arturiano dos romances, passado da colonização da Islândia ou passado lendário das sagas, passado da história. Em todos os casos, é a genealogia do presente que está em questão. É também a relação com a verdade. Os primeiros romances franceses são adaptações de obras da Antiguidade latina – a Tebaída, de Estácio, a Eneida. Por um esforço ao mesmo tempo histórico e filológico, eles têm a ambição de conservar a memória verdadeira do passado. Tomados em conjunto, eles pintam um afresco dinástico que vai dos Argonautas e da guerra de Tróia a Henrique II, o Plantageneta. Porém, em seu caminho eles encontram as maravilhas do mundo arturiano, tema de história mas também tema para histórias que todos escutam e nas quais ninguém acredita. Fascinado pelas maravilhas da Bretanha, o romance não se cansa de contá-las. Mas ele não pode mais reivindicar a verdade dos fatos. Procura, então, a do sentido. É a grande mudança realizada por Chrétien de Troyes.”(ZINK, 2002, p. 85)
“O termo ‘herói’, que na antiguidade designava uma personagem fora do comum em função da sua coragem e vitórias sem que por isso ela pertencesse às categorias superiores dos deuses e semideuses, desapareceu da cultura e da linguagem com a Idade Média e o cristianismo no Ocidente. Os homens que a partir de então eram considerados como heróis – sem que este termo fosse empregado – eram um novo tipo de homem, o santo e um tipo de governante promovido ao primeiro plano, o rei... Os heróis de que se trata aqui são personagens de alto posto ou de nível elevado que se definem não como santos e reis, mas de outra forma. O termo da linguagem medieval que mais se aproxima em francês antigo do que pretendo designar aqui é o adjetivo preux (corajoso, valente), que, no final do século XII, passa a ser substantivo. No século XII, o termo de onde vem a palavra prouesse (proeza) era associado ao valor guerreiro e à coragem, e na maior parte das vezes designava um homem destemido, um bom cavaleiro. No século XIII, ele modificou-se adotando principalmente o sentido de cortês, gentil, belo, franco.” (LE GOFF, 2009, p. 15-16).
“Os romances de aventuras traduzem essa tendência. Tomam, inicialmente, a forma dos romances antigos, de que Enéias, Heitor ou Alexandre representam os heróis. Repõem a Antiguidade em moda e introduzem nas mentalidades elementos da moral laica, sobretudo um ideal novo, que também se encontra nos trovadores provençais: a cortesia, que exalta as boas maneiras, o serviço à senhora, o amor dito ‘cortesão’, naturalmente adúltero, desprezando o casamento e desdenhando o ciúme. Pelo que já se disse, deve-se ver aí uma elaboração ideológica da pequena nobreza? É possível. Mas pode-se também sustentar que os príncipes e senhores usaram os modelos cortesãos em proveito próprio, para atrair os cavaleiros. Em troca, está claro que o ideal cortesão se opõe radicalmente à moral tradicional da Igreja: ele canta o amor sensual, o apelo aos favores da dama casada, a procura do luxo e da moda, o brilho dos tecidos, das riquezas e das cores, a bravura guerreira desinteressada, o porte imponente, a altivez, mesmo a arrogância aristocráticas.” (FLORI, 2002, p. 196-197)
Mas o cavaleirismo não teria sido o ideal de vida durante séculos se nele não estivessem presentes valores elevados para o desenvolvimento da vida em sociedade, se não tivesse sido social, ética e esteticamente necessário. A força desse ideal repousava justamente nesse seu exagero do belo. É como se o espírito medieval, com sua paixão sangrenta, só pudesse ser conduzido se o ideal fosse posto num plano elevado demais, assim como fazia a Igreja, e como fazia o pensamento cavaleiresco... Porém quanto mais um ideal de cultura exige virtudes das mais elevadas, maior é a desarmonia entre a forma de vida e a realidade. O ideal cavaleiresco, com seu conteúdo ainda semirreligioso, só podia ser reconhecido por uma época suscetível à completa ilusão, que fechasse os olhos frente a realidades muito duras. A civilização que estava despontando exigia que as aspirações elevadas demais da velha forma de vida fossem abandonadas. O cavaleiro torna-se o gentilhomme francês do século XVIII, que ainda mantém uma série de conceitos das questões da fé ou o protetor dos fracos e oprimidos. No lugar da figura do nobre francês, surge o gentleman, em linha direta com o antigo cavaleiro, agora modificado e refinado. Desse modo, nas transformações sucessivas do ideal cavaleiresco, a camada mais epidérmica, tornada mentira, se solta mais uma vez (HUIZINGA, 2010, p. 173).
Espelho da sociedade feudal, exaltando a função guerreira e seus atributos acima de tudo, as empreitadas aventureiras são projeções parciais das efetivas ocupações dessa sociedade, nas quais se ensejava ao indivíduo oportunidade para provar a bravura, a ousadia e a habilidade no manejo das armas (melhor dizendo, sua resistência física, dada a natureza dos combates). Como em muitos romances arturianos, e sobremaneira, no ciclo do Graal-Vulgata, há uma nítida influência clerical, os feitos cavaleirescos incidiam em pontos vitais do código cristão da cavalaria: a defesa dos fracos, das donzelas, das viúvas, do senhor (naturalmente) e a reparação das injustiças. A defesa da Igreja e da religião, ponto alto das canções de gesta, só é mencionada, mas na prática não aparece. Isto se explica porquanto essa literatura está presa ao seu atavismo céltico, erguendo-se gloriosamente ao lado de um pálido cristianismo, reduzido a umas práticas que mal recobrem as latentes tradições pagãs. Assim, muitas das aventuras contêm, velada ou abertamente, componentes mágicos e sobrenaturais, por vezes inexplicáveis nos limites da narração. (MELLO, 1992, p. 71).
Existindo no passado, no presente e no futuro, a aventura deixava de ser um mero fato, um acontecimento a realizar-se (como a imaginamos hoje e como o revela o próprio sentido etimológico do termo latino adventura, o que está por vir), para tornar-se uma instituição tão real quanto a corte de Artur e a Távola Redonda. Só deixava de existir quando fosse encontrada e resolvida pelo cavaleiro certo, a quem estava destinada. (MELLO, 1992, p. 70).
“A aventura propriamente dita acontece fora do mundo civilizado. Ela participa do meio florestal, do ambiente selvagem, desordenado e sobrenatural. Contudo, na foge aos padrões morais impostos à cavalaria cristã. O socorro às vítimas de injustiças e o resgate dos seqüestrados formam a trama básica de muitas delas. Ele podia ser solicitado na corte, ou nos caminhos percorridos pelos nossos personagens. O universo exterior estava repleto de raparigas maltratadas ou ameaçadas por indivíduos perversos, bem como de bons cavaleiros, feridos ou injustamente assassinados. Cabia então ao herói salvar a donzela em apuros ou vingar (vingança e justiça são sinônimos na Idade Média) a vítima.” (MELLO, 1992, p. 74).
“Fica por estabelecer a que é que se contrapõe, no sistema de valores dos homens do Ocidente medieval, esta floresta-deserto. Ao mundo, isto é, à sociedade organizada; por exemplo, no romance cortês, à corte, à corte do rei Artur. Contraposição mais complexa do que o que poderia parecer à primeira vista, porque o rei, como se disse, é também ele um homem da floresta que, de tempos em tempos, por causa da caça ou das suas relações com os eremitas, vai lá confirmar a sua sacralidade e legitimidade. Na literatura, expressão privilegiada, juntamente com as artes figurativas, do simbolismo de uma sociedade, capta-se sobretudo a contraposição floresta-castelo. Mas o castelo, nessas obras, é também a cidade... No Ocidente medieval, a contraposição não é, na realidade, entre cidade e campo, como na antiguidade (urbs-rus, para os romanos, com os desenvolvimentos semânticos urbanidade – rusticidade), mas o dualismo fundamental cultura – natureza exprimi-se de preferência mediante a contraposição entre o que é construído, cultivado e habitado (cidade, castelo, aldeia, indiferenciadamente) e o que é propriamente selvagem (mar, floresta, equivalentes ocidentais do deserto oriental), entre o universo dos homens que vivem em comunidade e o universo da solidão.” (LE GOFF, 1990, p, 51-52)
1 comentários:
Grande Diego,
Bacana este post. Gostei muito da forma como vc colocou a relação entre os heróis da Bretanha e os heróis da idade média...
Um abraço,
Hugo Marcelo
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