19 de dezembro de 2010

Escolas, magia, virtudes.

Escolas, magia, virtudes.



Estou de férias. Já entreguei as provas, reprovei quem tinha de reprovar, assinei os livros finais. Quanto ao doutorado, entreguei os relatórios finais, com minha produção bibliográfica do ano, com até bons resultados. Infelizmente, enfrentar uma tese de doutorado é postergar definitivamente férias daquelas que a gente esquece da vida. Vou sair durante duas semanas da minha casa, passar Natal e ano novo, e volto na segunda semana de janeiro para continuar o tormento acadêmico de produzir tese.


Nesse mês de finalização, assisti com minha mulher seis filmes da série do Harry Potter. Ela gosta bastante, assim como uma das minhas irmãs. Assistimos porque ela quer ver o sétimo filme, que já esta nos cinemas, e me convencia ver os seis, que não tinha visto, para poder entender o fechamento da série.



Confesso que sempre tive preconceito com o Harry Potter. Embora seja um leitor de literatura inglesa, seja traduzido por português e mesmo me aventurando no original em inglês, não gostava do jovem mago de Hogwarts. Pensava que era bobo e mesmo redutivo no potencial da fantasia inglesa, que já produziu Shakespeare, Blake, Stoker, Shelley, Tolkien, Lewis e Gaiman. O enredo de Harry Potter não me agradava por três razões.



Primeiro, minha base é o Tolkien. O Senhor dos Anéis é apenas a ponta do iceberg de uma vasta mitologia com milênios de histórias. Uma profundidade geográfica, cultural, religiosa, filosófica fundamenta a obra tolkieniana. E mesmo em O Senhor dos Anéis, o mote principal é salvar o mundo. Os hobbits que carregaram o Um Anel, Bilbo, Frodo e Sam, são destinados a fazer seus sacrifícios para salvar o mundo, tudo aquilo que eles amam. O inimigo é um anjo caído, um maiar, que varre com corrupção e destruição pelo simples desejo e ardência pelo controle sobre vontades e terras. Um mal ancestral, que repercute na origem da criação do mundo, é expresso em Sauron. Uma discussão sobre a liberdade, a capacidade de escolha do Bem, e da ação criminosa do Mal.



Em contraponto, Harry Potter é a história de um menino que quer ser o cara da escola. O mal é justamente um cara que quis ser o cara da escola, e assim ser imortal. Voldemort é a mesma moeda do Harry Potter, ambos querem ser o cara, o mais competente, o mais forte. Nada além de uma autoafirmação adolescente diante das dificuldades de se tornar gente. Tudo no Harry Potter é mais infantil, mais reduzido, de âmbito menor. Existe uma diferença objetiva entre se sacrificar por aquele que quer salvar o mundo e pelo cara que quer ser o cara da escola. Existe uma diferença entre entender que o Bem é algo maior do que eu, que abrange a vida inteira, e perceber que eu sou o centro do Bem, e não interessa o motivo: acaso, predestinação ou eleição. Ver que o Bem é algo que eu devo buscar e reverenciar é diferente de perceber que eu sou o Bem.



Os seis filmes do Harry Potter me instigaram a ver o final. Finalmente o adolescente cresce num mundo duro, e com mortes e decisões difíceis, consegue virar adulto. Parabéns. Me lembra muito o C.S. Lewis, que fez o mundo de Nárnia com adolescentes crescendo, bem na linha de Peter Pan, de Barrie. Harry Potter é da linha infantil que ajuda o menino e a menina a se tornarem gente grande. A mesma que o Lewis. Porém, o Lewis ainda abrange muito mais a discussão quando coloca o poder, a traição, as virtudes como centro de um mundo inteiro, muito maior que os adolescentes que passeiam por esse mundo. O centro da narrativa de Lewis é Nárnia. Basta assistir esse último filme, Peregrino da Alvorada, para ver que os heróis adolescentes mudam. Em Harry Potter, tudo começa e termina com um órfão adolescente mostrando que é o melhor cara da escola.



O segundo motivo de eu não gostar do Harry Potter é a divisão drástica entre os trouxas e os magos. Esse negócio de raça pura e predestinação é um enrosco. Mesmo a autora refazendo o argumento em vários momentos, para dar uma aliviada no racismo e na divisão aristocrática, a tensa é permanente. Existem pessoas que nasceram e são destinadas a comandar, e existem pessoas que nasceram e são destinadas a obedecer. Durante milênios a humanidade pensou assim, mesmo no Brasil com a escravidão foi assim durante muito tempo. Mas associar aristocracia com magia e estabelecer essa magia como uma disputa de egos, quem é o mais forte, simplesmente é nazismo. Foi justamente por isso que a estrutra aristocrática feudal acabou. Por decadência dos nobres. Ao menos na antiguidade e na idade média, a formação da aristocracia era para o serviço. Os heróis mitológicos gregos deviam proteger o povo, mesmo enfrentando os deuses, assim como os cavaleiros cristãos deveriam proteger peregrinos e camponeses. Qual o serviço dos magos de Hogwarts? Ser melhores que eles mesmos e se enfrentarem a eles mesmos numa ridícula briga de grupos escolares.


A terceira razão de eu não gostar de Harry Potter é a ausência da religião. Que é a mesma coisa de ausência de uma causa justa e virtuosa (minha primeira razão), e a ausência de uma valorização da vida humana, por mais banal que seja (minha segunda razão), porém quando falo religião falo de uma busca mitológica que procure vislumbrar realidade objetivas que dão sentido na vida e que fazem a razão humana partir em busca do infinito e da eternidade. A grande vantagem da fantasia, a produção imaginativa capaz de criar imagens que não existem na realidade material, é poder se aventurar nos mistérios do mundo, do homem e do transcendente que sustenta todas as religiões. Toda boa fantasia deve ter um traço profético, visionário, extático, sapiencial.


Em Harry Potter, a fantasia é simplesmente uma maneira do adolescente se sentir mais poderoso que seu primo trouxa, mas com família que o ama, mesmo sendo uma família ridícula. Uma maneira do adolescente tímido poder controlar a natureza, justamente porque não consegue controlar seu meio social. Escapismo e delírios. Nada mais distante do que Shakespeare, Tolkien e Gaiman produziram.

Vou assistir com minha mulher o sétimo filme do Harry Potter. Afinal de contas, posso voltar a ser professor de adolescentes tímidos, cheios de inseguranças e dramas familiares. Ainda bem que existem outras literaturas fantásticas que alagam a visão, e não chovem no molhado.

3 comentários:

Hugo Marcelo disse...

Grande Diego,

Eu em grande parte concordo com vc, acho que Potter fez tanto sucesso justamente porque faz eco à cultura pós-moderna. Sem grandes virtudes mas sem grandes vícios, sem grandes ideais, ou seja, o que sobra é ser o cara da escola, tirar boas notas, não pisar na grama e não arrotar à mesa.

Depois comente o que achou do último filme, eu gostei apenas dos últimos 10 min de filme, um debate de como se deve morrer!

Hugo Marcelo

Fabi Dias disse...

Obrigada por assistir os filmes comigo!!!!
Ainda prefiro Harry a Nárnia!!!

Te amo!

Unknown disse...

Amigo, acredito que o Harry Potter que eu li e conheço não seja o mesmo que está no seu texto. Pois afirmo, se você está baseando seu olhar apenas nos livros, está tomando conclusões absurdamente errôneas.
O Harry Pptter que eu conheço jamais quis ser o cara da escola, e odeia toda a atenção que recebe. Os Harry Potter que eu li falam da história de um menino que é posto para carregar um fardo que não quer, e mostra o crescimento desse menino tendo que conviver com isso.
Os Harry Potter aos quais dediquei horas lendo e relendo mostraram, ao longo da vida desse menino, que tudo aquilo não era sobre ele ganhar ou perder. Era sobre algo bem maior, que englobava suas duas facetas: a de bruxo e a de trouxa. Ele mostrou, por várias vezes, os problemas e motivos da divisão entre bruxos e trouxas, ressaltando que tal divisão não deveria encorajar naqueles nenhum tipo de superioridade, pois a história mostrava que isso só traria a ruína.

Sinceramente, acho que você deveria ler o livro.

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