8 de março de 2010

Saber-poder e RPG (relações humanas no jogo)

Assim como outras pessoas, já tive oportunidade de presenciar amplamente as tensas relações as quais se travam entre mestres e jogadores de RPG dentro e fora dos jogos, observando como elas são, ao mesmo tempo, interessantes e lamentáveis. Mas, antes de falar de detalhes destas relações propriamente ditas, utilizarei algumas palavras de um filósofo que fala sobre isso:

“[...] a relação não é do objeto ao sujeito de conhecimento, é uma relação ambígua, reversível, belicosa, de mestria, de dominação, de vitória: uma relação de poder” (Foucault, 2002; pág. 311).

Esse mesmo autor, em outro livro, o Microfísica do Poder (Foucault, 2008), menciona que as relações são lutas e embates de forças, contradições, relações de poder que emanam verdades e suscitam modos de ser, pensar e agir. Ao pensarmos desta maneira, desconstruímos um modelo rígido de relação onde somente é aceitável um pacifismo que desconsidera os diversos meandros do/de ser humano, demasiadamente humano.

Portanto, na relação jogador-jogador, há os “jogadores que sabem mais” (ou acham que sabem mais) sobre as regras e/ou cenário e exercem poder de modo a imporem isso, argumentando regras, estratégias e ações e, por vezes, tentando tomar a atenção do mestre para si ou gerenciando os personagens dos outros jogadores, ora de forma sutil, ora de forma autoritária. Quanto aos outros jogadores, muitas vezes escolhem não exercer poder de formas autoritárias na relação, então não adotam posições de oprimidos e passivos, porém, muitas vezes escolhem posicionamentos de aceitação da situação.

Mas vale lembrar que há sempre a possibilidade desses outros jogadores iniciarem um processo de resistência, onde ocorra a imanência de incômodos que também transversalizam aqueles que exercem as posições autoritárias do grupo, fazendo-os repensar em como conseguirão o que querem ou desistirem de seus autoritarismos. Jogadores assim podem ser ríspidos com aqueles que eles deveriam estar apenas se divertindo e não criticando ou tentando impor decisões.

O problema fica (terrivelmente) interessante quando o mestre impõe o saber, pois o poder ele já tem, pelo menos legitimando somente durante o jogo e nas questões referentes ao jogo, fora do jogo alguns mestres não percebem a separação entre estes campos e se perdem exercendo poderes que não lhe são autorizados para o momento, mas que olhe poderão ser depois, por “submissão” do jogador em troca de participar do jogo. Mestres assim chegam a humilhar seus jogadores ou os personagens destes se algo o desagrada, se as atitudes da sessão de jogo não o agradam como risos ou diversão demais ou falta de comprometimento. Já ouvi de um mestre que “o problema é que o pessoal não vem jogar, até joga, mas eles ficaram amiguinhos e usam o jogo para se encontrar”.

Mestres assim não conseguem manter jogadores, só aqueles que não se importam mesmo em se submeterem, pois a tendência é procurar outros mestres, outras mesas ou criar um novo mestre entre eles mesmos, os “jogadores rebeldes”. Dessa forma o mestre tirano precisa periodicamente criar novos grupos de jogadores e amigos-jogadores, pois mesmo que haja a separação entre o poder dentro e fora do jogo, o jogo fica sem diversão pelo poder imposto do mestre, criando o afastamento dos jogadores. Se não existe outro tipo de relação entre jogadores e mestres, outros tipos de convivência (escola, vizinhança, trabalho, universidade, etc.), o afastamento é praticamente inevitável.

Gilson¹ com colaboração de Danielle ²

¹ Mestrando da área de Educação com a dissertação sobre linguagens, narrativas, juventudes e RPG.

² Psicóloga e mestranda em Psicologia Social, estuda relações gênero, genealogia e direitos humanos.

Referências
FOUCAULT, M. Problematização do Sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. 2 ed. Manoel B. da Motta (Org.) e Tradução Vera L.A. Ribeiro. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2002. (Ditos e Escritos I).

FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. Em: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008.

3 comentários:

Gilson Rocha disse...

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Gilson

Anônimo disse...

Achei muito bacana o post! Fizeram uma relação bem consistente entre a teoria de Foucault (que não é mto fácil de ser entendida e consequentemente de ser trabalhada) e o RPG... Talvez pela dificuldade da teoria, o post não tenha feito o sucesso merecido! Poderiam fazer um artigo, não?! Parabéns! hehe

Gilson Rocha disse...

Grato, Julia. As relações com Foucault foram abordadas por minha amiga e psicóloga, como você, sendo que ela nunca jogou RPG, mas não precisaria para me ajudar com que eu quis abordar.

Enviarei o link desta postagem para ela acompanhar a partir de seu comentário e sugestão de artigo (científico?).

Gilson

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